Refúgio no Brasil: o que está em jogo com a nova decisão do governo para a situação dos migrantes inadmitidos no Aeroporto Internacional de Guarulhos?

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24 de setembro de 2024

Refúgio no Brasil: o que está em jogo com a nova decisão do governo para a situação dos migrantes inadmitidos no Aeroporto Internacional de Guarulhos?

As entidades da sociedade civil que subscrevem este documento, Missão Paz, Caritas Arquidiocesana de São Paulo, Caritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e Associação Brasileira de Defesa da Mulher, Infância e Juventude (Asbrad), especializadas e atuantes no âmbito do Direito Migratório, do Direito Internacional das Pessoas Refugiadas e dos Direitos Humanos contam com históricos de atuação que variam entre 80, 50 e 30 anos de trabalho ininterrupto no acolhimento, atendimento direto e defesa de pessoas migrantes, solicitantes de refúgio, refugiados, apátridas e vítimas de contrabando e tráfico de pessoas no Brasil.

O trabalho da Asbrad, por exemplo, remete à primeira atuação da sociedade civil brasileira no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em 1998, com iniciativa que foi absorvida pelo poder público municipal da cidade reconhecido hoje como Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM), oficializado pelo Decreto Municipal nº 34.683, de 1º de fevereiro de 2018. Já Missão Paz e Caritas Arquidiocesana de São Paulo acompanham, há mais de uma década, a realidade na área restrita do Aeroporto, compondo, como observadores, o Grupo de Trabalho criado no âmbito do Termo de Cooperação Técnico-Institucional para Proteção e Promoção de Soluções Humanitárias e Solidárias em Situações de Migrantes Inadmitidos no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Por fim, a Caritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro participa das ações que envolvem a mesma agenda no contexto do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro – Galeão.

Diante da experiência acumulada, acreditamos que nossa contribuição ao debate deve incluir um documento mais abrangente, resgatando pontos históricos sobre algumas melhorias construídas ao longo do tempo, bem como os desafios enfrentados nos últimos anos e a consequente escalada de violações na área restrita do Aeroporto de Guarulhos. Além disso, apresentamos um levantamento técnico-jurídico, que consideramos essencial para questionar alguns dos argumentos utilizados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e pela Polícia Federal (PF) para justificar as medidas adotadas desde 26 de agosto de 2024.

Dessa forma, nós nos somamos às vozes das dezenas de coletivos migrantes que vêm se manifestando pelas diversas vias que nossa democracia nos permite, além da indispensável e irretocável atuação da Defensoria Pública da União, que vem debatendo o tema e propondo soluções mais humanas para a realidade posta há muito tempo.

Este mesmo grupo de entidades vem relatando, desde o gabinete de transição do governo Lula, a necessidade de decisões concretas serem tomadas em relação ao cenário da área restrita do Aeroporto Internacional de Guarulhos, bem como manifestando nos espaços de consulta criados no âmbito da construção da Política Nacional de Migração Refúgio e Apatridia, a urgentíssima necessidade de revisão do Decreto nº 9.199/2017 que regulamenta a Lei de Migração nº13.445/2017, além do abismo existente entre as normativas que reconhecem e garantem importantes institutos como o da Reunião Familiar e da Acolhida Humanitária e a prática rígida, complexa e sobrecarregada por exigências que tornam tais direitos inacessíveis para as pessoas migrantes e refugiadas no Brasil.

Finalmente, as últimas medidas que representaram uma mudança significativa na política migratória brasileira, como a Portaria Interministerial n° 42 de 2023, que condicionou a emissão de vistos humanitários para os afegãos a patrocínio pela sociedade civil, e a mais recente Nota Técnica nº 18/2024/Gab-DEMIG/DEMIG/SENAJUS/MJ que impede a solicitação de refúgio para viajantes em trânsito nos aeroportos internacionais, foram decididas unilateralmente pelo governo, sem qualquer diálogo prévio com a sociedade civil, mesmo que essa estivesse diretamente implicada na implementação das políticas.

Essa conduta contraria o discurso que o Brasil adota nos espaços internacionais, por exemplo, quando a Secretária Geral das Relações Exteriores, Embaixadora Maria Laura da Rocha, ressaltou na abertura da 54ª Assembleia Geral da OEA, em 26 de junho de 2024, que “o diálogo com a sociedade civil é uma diretriz central do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva” e que o presidente “vem impulsionando medidas para retomar a plena participação da sociedade civil nas ações governamentais.” (1). A realidade tem sido outra no tema da migração e preocupa-nos o distanciamento e a violação dos princípios constitucionais da transparência e do controle e participação social que devem reger um governo democrático.

  1. Do histórico de atuação interinstitucional na área restrita do Aeroporto Internacional de Guarulhos

A visibilidade para o que ocorria na área restrita do Aeroporto Internacional de Guarulhos remete aos primeiros anos da década de 2010, e teve início com denúncias feitas por algumas das organizações da sociedade civil que subscrevem esse documento, juntamente com a Defensoria Pública da União, a partir da constatação da permanência de pessoas migrantes potenciais solicitantes de refúgio, por longos períodos naquele espaço, em situação de grave violação de direitos humanos. Tais migrantes permaneciam por semanas, por vezes até meses, em um local de infraestrutura inadequada para uma longa permanência, situado em área restrita do aeroporto. Nesse recinto, os migrantes ficavam sob responsabilidade das companhias aéreas, com a sua liberdade limitada, sem acesso aos seus pertences e não raro sem alimentação adequada, até que fossem repatriados ou que sua situação migratória fosse resolvida de outra forma. Esse espaço, que inicialmente ficava situado no corredor de conexão entre terminais do aeroporto, passou a ser chamado de “conector” e, posteriormente, Sala de Inadmitidos ou “sala de inads”, referindo-se à situação de inadmissão em que os viajantes se encontravam.

A permanência desse grupo naquelas condições de liberdade restrita acontece até os dias atuais e configura um estado de detenção desses migrantes, o que é expressamente vedado pela Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 em seis artigos 3º, 8º, 20, 21, 23 e 26 e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), em seu artigo 7º, ambos ratificados pelo Brasil.

Um dos casos mais emblemáticos foi o do cubano Ifrain Pas (2), que ao tentar ingressar no país, em abril de 2013, permaneceu por 5 meses retido aguardando uma solução para sua situação migratória sendo admitido no Brasil após atuação da Defensoria Pública da União. Em 2014, os casos do ganês Mohan* e do bengali Usman* (3), que permaneceram 25 dias retidos, contaram com atuação da DPU, juntamente com a Caritas São Paulo para que suas solicitações de refúgio fossem processadas (4). Junto desses, dezenas de outros casos começaram a chegar às organizações da sociedade civil que, juntamente com a DPU, buscaram o 2º ofício da Procuradoria da República no Município de Guarulhos (responsável, dentre outras atribuições, pelo Controle Externo da Atividade Policial e de Procurador dos Cidadãos),  relatando a realidade de violações de direitos que aqueles migrantes viviam ao serem privados de sua liberdade, além de relatos de recusa, por parte da Polícia Federal, em receber as solicitações de refúgio.

Assim, foi instaurado um procedimento e iniciou-se a abertura de diálogo que culminou na elaboração do primeiro Termo de Cooperação Técnico-Institucional para Proteção e Promoção de Soluções Humanitárias e Solidárias em Situações de Migrantes Inadmitidos no Aeroporto Internacional de Guarulhos (TCTI), firmado em 28 de janeiro de 2015, pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), a Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), o Comitê Nacional Para os Refugiados (CONARE), a Defensoria Pública da União (DPU), o Município de Guarulhos, pela Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social (SDAS), e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e teve por objetivo promover e fortalecer, a partir de cooperação mútua, a proteção e promoção de soluções humanitárias e solidárias para situações de migrantes inadmitidos no Aeroporto Internacional de Guarulhos.

Nele, previu-se que o Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM), ligado à SDAS do Município de Guarulhos, que já oferecia assistência aos migrantes fora da área restrita, passasse a prestar atendimento também na área restrita a partir da identificação inicial daqueles que potencialmente necessitavam de uma proteção especial, com o encaminhamento de informações aos órgãos competentes, para providências cabíveis.

Cabe ressaltar que essa abertura para o diálogo que reuniu diversos atores, considerando a experiência e a presença da sociedade civil nas discussões e na busca por soluções, antecedeu o amplo debate em torno da revogação do Estatuto do Estrangeiro, pautado na lógica securitária e até então em vigor, e sua substituição pela Lei de Migração, cujo marco paradigmático foi o entendimento do migrante como sujeito de direito.

Formalizado o TCTI, criou-se o Grupo de Trabalho (GT) responsável por sua efetivação e elaboração do plano de trabalho, mantendo a composição heterogênea do grupo de discussão que havia caminhado em conjunto até ali. Assim, representantes locais dos signatários do Termo, juntamente com Polícia Federal e sociedade civil, especialmente Cáritas São Paulo e Missão Paz, compuseram o GT e deram início aos trabalhos.

Apesar dos esforços iniciais para mapeamento, identificação e possíveis soluções para o cenário, a falta de clareza das competências e dos fluxos ainda persistiam (e persistem) e, assim, violações de direitos humanos seguiram (e seguem) sendo praticadas naquele local. Por exemplo, a sala não contava com estrutura que fosse sensível a questões de gênero, idade ou que levassem em consideração outras necessidades específicas. Desta maneira, havia relatos de presença de mulheres grávidas, crianças desacompanhadas, pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida que permaneciam desassistidos naquele espaço restrito.

Assim, em julho de 2015, a sociedade civil reportou a situação na 29ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU e, em agosto do mesmo ano, participou, juntamente com membros do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (5), de uma reunião com o então Relator Especial da ONU sobre Tortura, Juan E. Méndez, que esteve em missão no Brasil naquele ano. Méndez apresentou seu relatório sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes no Brasil (A/HRC/31/57/Add.4) (6) na 31ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 29 de janeiro de 2016, dando visibilidade internacional para as violações que estavam ocorrendo.

Em setembro de 2016, ao identificar o comportamento das companhias aéreas em manter os migrantes inadmitidos nas áreas de portões sem que essas pessoas pudessem apresentar-se ao controle migratório, correndo o risco de serem devolvidos a um país onde sua vida ou integridade corressem risco, em violação clara ao princípio da não-devolução (non-refoulement), além de relatos de embarque forçado por parte de agentes privados ligados às empresas aéreas, o MPF expediu à PF e às companhias aéreas a recomendação nº. 15/2016. Tal recomendação foi fundamental nos anos seguintes para o entendimento das violações de direitos humanos ocorridas até então.

Em fevereiro de 2017, o segundo TCTI é firmado e, desta vez, com menção explícita à participação da sociedade civil no GT em sua Cláusula Nona. Assim, Missão Paz e Cáritas de São Paulo seguiram contribuindo através de: i) apoio técnico à atuação dos integrantes do Grupo de Trabalho, em especial ao Posto; ii) organização de rede de intérpretes voluntários que possam apoiar remotamente as entrevistas realizadas pelo Posto e pela DPU, sempre quando necessário; iii) apoio no encaminhamento de casos às redes de proteção, assistência e integração local, sempre que necessário; iv) apoio à realização de workshops e treinamentos sobre migração, direitos humanos, direito migratório, metodologia para realização de entrevistas, recepção, encaminhamento e acompanhamento de casos; v) discussão de casos concretos junto aos demais integrantes do GT; vi) orientação e apoio jurídico direto a casos concretos, sempre quando necessário; contribuição com fluxos de informação para migrantes e integrantes das redes de assistência e proteção; vii) abrigamento na Casa do Migrante da Missão Paz, quando necessário; viii) além de conferir transparência ao tratamento que os migrantes recebiam na área restrita.

O trabalho desenvolvido pelo GT abrangeu diversas frentes envolvendo todos os membros, como por exemplo, elaboração de formulário de entrevista e de fluxos de comunicações, que culminaram na formalização de plano de trabalho, sempre com foco em abreviar a permanência desses migrantes em situação de liberdade limitada, mas com a preocupação de não incentivar ou induzir ao uso indiscriminado da solicitação de refúgio.

A pactuação final do Plano de Trabalho aconteceu em 2018, concretizando meios de operacionalização do TCTI através de Protocolo Operacional Padrão e Formulário de Entrevista amparado em melhores práticas. Naquele mesmo ano, o MPF/GRU iniciou as tratativas junto à concessionária GRU Airport para implantação de melhorias na Sala dos Inadmitidos, a fim de garantir maior conforto e bem-estar como, por exemplo, com a colocação de sofás novos, televisão, ar-condicionado, reforma nos banheiros e também para a ampliação da sala utilizada pelo Posto Humanizado para fazer atendimento no Terminal 2, fora da área restrita.

Os anos de 2020 e 2021 foram marcados pela pandemia mundial de Covid 19, o que reduziu drasticamente a movimentação de passageiros, sobretudo no primeiro ano, com a publicação de dezenas de portarias de restrição de entrada. Segundo dados da GRU Airport (7), 2019 havia sido o ano de recorde em movimento de passageiros internacionais, chegando a 14.763.629 embarques e desembarques. Em 2020 e 2021, os números mantiveram-se ao redor de 4 milhões por ano. Dessa forma, os números de solicitação de refúgio, segundo dados da Delegacia Especial no Aeroporto Internacional (DEAIN) apresentados em reuniões do GT, foram 256 no primeiro ano da pandemia, e voltaram a aumentar a partir de 2021, chegando a 1.486 pedidos.

Em junho de 2022, a Chefe de Divisão Técnica da Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social, responsável pela coordenação do PAAHM, notifica o GT de que com grande fluxo de chegada da população afegã (8) ao Brasil e a necessidade dessas pessoas em receberem orientações iniciais, o Posto Humanizado estava ultrapassando os limites de seus atendimentos, fazendo com que a equipe ficasse impossibilitada de realizar a visitação diária dentro da área restrita, o que, de certa forma, prejudicava o fiel cumprimento do plano de trabalho por parte do Posto, no que diz respeito às visitas à área restrita do aeroporto. Diante disso, e observando a diminuição do fluxo de informações relativas aos casos e tempos de permanência dos migrantes na área restrita, Missão Paz e Cáritas São Paulo enviam carta aos signatários do TCTI manifestando preocupação com o bom cumprimento do firmado no Termo e pactuado no Plano de Trabalho.  A situação envolvendo a presença de centenas de afegãos acampados no Terminal 2 do aeroporto permaneceu durante muitos meses de 2023, evidenciando, mais uma vez, o gargalo em políticas de acolhimento a pessoas migrantes e refugiadas no Brasil. Concomitante a isso, volta a crescer o número de pessoas em situação de inadmissão que estavam permanecendo por muitos dias tanto na região dos portões, como no hotel, e que chegavam a ficar dias sem terem assistência básica prestada pelas companhias aéreas, além de relatos de pessoas retornadas ao país de origem mesmo demonstrando a intenção de solicitar refúgio no Brasil.

  1. Da situação recente na área restrita do Aeroporto de Guarulhos:

O significativo aumento do número de migrantes na área restrita aguardando o processamento de seus pedidos de refúgio passou a ser veiculado amplamente pela imprensa, a partir de abril de 2023, quando atingiu o pico de mais de 300 migrantes no local. (9)

Desde então, os números de migrantes inadmitidos permanecem na casa de centenas e, com isso, as condições em que as pessoas são mantidas foram se agravando consideravelmente, a ponto de a Defensoria Pública da União emitir a Recomendação nº 6701694 – DPGU/SGAI DPGU/GTMAR, em 5 de dezembro de 2023, relatando um quadro generalizado de violações de direito com a presença de gestantes, crianças e crianças e adolescentes desacompanhados, sem assistência de saúde, sem acesso à alimentação e à higiene adequada, por um período de tempo que chegava a semanas de espera.

Esse cenário de violações de direitos culminou na morte do ganense Evans Osei Wusu em 13 de agosto de 2024. A certidão de óbito de Evans aponta que ele morreu de infecção generalizada, após um quadro inicial de infecção urinária, o que pode ser indicativo de negligência no acolhimento à sua demanda de saúde. Esse fato é comprovado pelo relato de sua família que afirma que Evans pediu ajuda enquanto estava na área restrita do aeroporto de Guarulhos, mas não teve a assistência necessária. Em um encadeamento de violações de seus direitos, após a sua morte, o imigrante foi sepultado no cemitério municipal de Guarulhos sem o consentimento da família. O Ministério da Justiça eximiu-se de qualquer responsabilidade sobre o caso afirmando que “não cabia à Senajus [Secretaria Nacional de Justiça] o atendimento ou o acompanhamento da assistência ao migrante de Gana” e que “a Senajus não foi comunicada sobre a situação do viajante“. (10)

Diante da alta repercussão da situação no aeroporto de Guarulhos, o governo brasileiro decide, então, emitir a Nota Técnica nº 18/2024/Gab-DEMIG/DEMIG/SENAJUS/MJ que impede a solicitação de refúgio para viajantes em trânsito nos aeroportos internacionais.

  1. Da nova medida do governo e suas ilegalidades

Ignorando as recomendações da DPU de vias procedimentais mais ágeis permitidas pela legislação brasileira, de forma a reduzir o tempo de retenção das pessoas na área restrita em condições indignas, e em resposta às indagações da imprensa, o governo brasileiro passou a utilizar a narrativa de “uso indevido do refúgio” (11), interpretando o cenário como consequência da utilização do Brasil como rota para contrabando de migrantes, abordando apenas de maneira secundária problemas de natureza estrutural relacionados à instabilidade do sistema de pedido de refúgio (SisCONARE), ao fato de o formulário de solicitação de refúgio só estar disponível em português, o que requer a presença de intérpretes para apoiar no seu preenchimento, à incapacidade da Polícia Federal de processar um alto volume de solicitações de refúgio e à falta de espaço e serviços de assistência e saúde adequados para os viajantes que permanecem na área restrita (12).

Diante disso, o governo posicionou-se, na imprensa, no sentido de impedir o pedido de refúgio de viajantes em trânsito. Posteriormente, divulgou uma Nota Técnica de Entendimento com tom securitário, como base para a mudança no procedimento de admissão dos passageiros nos aeroportos internacionais. Essa decisão contraria, frontal e explicitamente, o artigo 8° da Lei 9.474/97, a Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados e o Protocolo de Palermo.

A Lei 9.474/97, em seu artigo 8º, é expressa em dizer que “o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes”. De acordo com esse dispositivo, o fato de uma pessoa ter ingressado no país sem seguir todos os procedimentos legais de entrada não significa não necessitar de proteção internacional, tampouco impede a solicitação de refúgio. Portanto, a Nota Técnica do Ministério da Justiça viola a legislação nacional, colocando em risco o sistema de refúgio no Brasil e agindo em desacordo com o processo legislativo e a Constituição Federal.

Além disso, a Nota Técnica fundamenta-se em uma interpretação controversa da Lei de Migração, que não está alinhada com o princípio da proibição ao retrocesso em direitos humanos. Tal princípio estabelece que os direitos humanos conquistados por meio de legislações, tratados internacionais ou decisões judiciais não podem ser reduzidos ou revogados. Logo, os direitos humanos são progressivos e devem ser continuamente ampliados e fortalecidos, jamais diminuídos. Isso significa que o Estado deve abster-se de adotar políticas ou medidas que reduzam o nível de proteção dos direitos já alcançados. Em situações de extrema necessidade, seria possível encontrar um equilíbrio na aplicação de medidas, o que contrasta com a abordagem agressiva adotada, que pode representar um retrocesso em toda a legislação migratória e suas interpretações. Ainda que consideremos haver margem para interpretações, não se espera que em tema tão delicado seja escolhida a mais gravosa, com maior restrição de direitos e que mais se afasta dos princípios que fundamentam a legislação brasileira sobre refúgio e migração.

Embora a Nota Técnica enfatize o aumento do fluxo de nacionais oriundos do Sudeste Asiático, em particular, nepaleses, vietnamitas, paquistaneses e indianos, o grupo que se encontra no aeroporto de Guarulhos tem natureza heterogênea e plurinacional incluindo não só nacionais do Sudeste Asiático, mas também pessoas oriundas do Mali, Burkina Faso, Camarões, Somália, Etiópia, entre outros.

Identifica-se, portanto, nacionais de países que já tiveram Grave e Generalizada Violação de Direitos Humanos declarada pelo Comitê Nacional para os Refugiados, bem como casos de deferimento de refúgio por grupo social como risco de mutilação genital feminina e perseguição à comunidade LGBTQIA+.

Em resposta ao ofício redigido pela Defensoria Pública da União, o Ministério da Justiça, na 180ª Reunião Ordinária do Comitê Nacional para os Refugiados, informou que haveria a modulação do procedimento exarado na Nota Técnica de maneira que, ainda que inadmitidos, os nacionais de países afetados por Grave e Generalizada Violação de Direitos Humanos – Afeganistão, Burkina Faso, Iraque, Mali, Síria e Venezuela –  não seriam submetidos ao novo procedimento e teriam direito à solicitação de refúgio. Também foram incluídos nessa exceção nacionais de países para os quais o Brasil possui políticas específicas de Acolhida Humanitária: Afeganistão, Haiti, Síria e Ucrânia (este último já não seria afetado pela medida em razão da isenção de vistos de entrada no país). Ainda, às crianças e aos adolescentes desacompanhados, continuaria a ser aplicado o procedimento estabelecido na Resolução Conanda nº 232/2022, não havendo óbice à solicitação de refúgio.

Em primeiro lugar, é fundamental que esse posicionamento seja formalmente registrado na Nota Técnica, com a devida atualização e republicação. Além disso, esse entendimento, veiculado apenas oralmente em uma reunião cujo acesso é restrito aos membros do CONARE, deve ser imediatamente comunicado aos funcionários dos aeroportos, das companhias aéreas e à Polícia Federal, a fim de garantir um melhor alinhamento das ações.

Em segundo lugar, ainda que a Secretaria Nacional de Justiça tenha se ocupado em rever o ponto acima mencionado, deixou de incluir na modulação os entendimentos do CONARE apresentados na Nota Técnica nº 2/2023/CONARE (processo administrativo 08018.014695/2023-24) sobre Corte e Mutilação Genital Feminina (C/MGF) e a Nota Técnica sobre Perseguição à população LGBTQIA+. As duas notas trazem listas de países sobre os quais o CONARE recomenda que seja aplicado o critério prima facie da condição de refugiado, com dispensa de entrevista.

Informa-se que 71 países foram incluídos na Nota Técnica referente à perseguição à população LGBTQIA+. De acordo com relatório da Polícia Federal contendo a lista de países de origem das pessoas inadmitidas em Guarulhos, é possível identificar várias nações onde, segundo a Nota Técnica do CONARE, há risco elevado de perseguição ao grupo social citado como, por exemplo, Camarões, Bangladesh, Gana, Etiópia, Quênia, Togo e Paquistão.

Por sua vez, a Nota Técnica sobre MGF traz 27 países em que o critério prima facie poderia ser aplicado às solicitações de refúgio de mulheres e meninas sobreviventes ou potenciais vítimas da prática de Corte ou Mutilação Genital Feminina, como Egito, Etiópia, Guiné, Guiné-Bissau, Somália e Nigéria, dentre outros. Nesse ponto, também urge a modulação da regra de impedimento de solicitação de refúgio aplicada pelo governo brasileiro.

Resta evidente que o impedimento de pessoas das nacionalidades supracitadas de solicitarem refúgio contraria o próprio entendimento do CONARE e coloca em grave risco a vida de centenas de refugiados. A não observância do princípio do non-refoulement nesses casos também se revela como uma potencial fonte de danos irreparáveis. Para que se possa obter informações precisas dos solicitantes de refúgio é essencial que haja uma escuta qualificada, realizada em um ambiente seguro. Torna-se, portanto, imprescindível a existência de mecanismos eficazes para identificação desses indivíduos e da necessidade de proteção de cada um deles, sob pena de grave violação de direitos.

Ainda no tema da modulação da regra geral, a direção do Departamento de Migrações, na 180ª Reunião Ordinária do Comitê Nacional para os Refugiados, informou que não haveria devolução em cadeia e que, em caso de inadmissão no destino final e retorno para o Brasil, o viajante teria, finalmente, direito de solicitar refúgio. Novamente, entendemos fundamental a inclusão desse ponto em uma atualização da Nota Técnica para melhor orientação das ações da Polícia Federal e das companhias aéreas.

Embora o nosso pedido seja pela revogação completa da Nota, subsidiariamente vislumbramos a possibilidade de sua modulação de forma a mitigar os nefastos efeitos da aplicação da Nota. Os recortes explicitados acima demonstram que pautar uma medida em três ou quatro nacionalidades, enquanto aquele espaço é composto por nacionais de dezenas de países diferentes, é absolutamente simplista e reducionista.

  1. Da justificativa do governo em combater o contrabando de migrantes e o tráfico de pessoas

De acordo com o governo federal, a medida adotada tem como principal objetivo o combate ao contrabando de migrantes e ao tráfico de pessoas. Todavia, essa estratégia não encontra respaldo legal e empírico. Além disso, a Informação nº 35918189/2024-SADIP/CGMIG/DPA/PF, do Setor de Análise de Dados de Inteligência Policial, emitida pela Polícia Federal em 27 de junho de 2024, baseia-se em dados de registro e não traz de forma transparente dados sobre operações direcionadas ao combate ao contrabando de migrantes e prisão de seus perpetradores.

As medidas apresentadas na Nota Técnica foram categorizadas em curto, médio e longo prazo, sendo que, dentre as de curto prazo, estão o impedimento da solicitação de refúgio por viajantes sem visto de trânsito, bem como o fortalecimento da sensibilização e comunicação sobre o contrabando de migrantes, com o objetivo de sua prevenção. Até o momento, apenas uma das medidas foi implementada — a mais severa e restritiva da história recente — deixando a questão central, que deveria fundamentar e ser o grande objetivo da Nota Técnica, em segundo plano. A intensificação das ações de repressão aos crimes de tráfico de pessoas e contrabando de migrantes, com o fortalecimento das capacidades operacionais da Polícia Federal, foi relegada ao médio prazo, quando, na verdade, deveria ser tratada com prioridade e como uma ação de curtíssimo prazo.

No tocante à legalidade, trazemos à tela o Protocolo de Palermo, formalmente conhecido como o Protocolo Adicional da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, e seus protocolos adicionais: Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças; Protocolo relativo ao Combate ao Contrabando de Migrantes por via Terrestre, Marítima e Aérea, que foram adotados em 2000 e incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro pelos Decretos nº 5.017 de 2004 (13) e nº 5.016 de 2004 (14), no primeiro mandato do Presidente Lula. O Protocolo de Palermo é a principal diretriz internacional para o combate aos crimes transnacionais. Seguindo as regras de vigência, o Protocolo estabelece, em seu artigo 2°, a necessidade de que todas as medidas adotadas nesse contexto sejam implementadas com pleno respeito aos direitos humanos.

Em consonância com esse princípio, traz também uma importante cláusula de salvaguarda, presente no artigo 14, que impõe uma obrigação categórica aos Estados: as medidas para combater o tráfico de pessoas não podem, em hipótese alguma, prejudicar os direitos e as obrigações decorrentes de outros instrumentos internacionais de direitos humanos, especialmente aqueles que protegem o direito de asilo e refúgio.

A cláusula de salvaguarda, portanto, atua como um escudo protetor, garantindo que as ações voltadas ao enfrentamento do tráfico de pessoas não resultem em violações dos direitos assegurados em outras convenções internacionais. Ao restringir o acesso ao refúgio, o governo brasileiro ignora essa cláusula essencial, comprometendo a segurança e a dignidade daqueles que, muitas vezes, são vítimas de redes internacionais de tráfico e que buscam no Brasil um porto seguro. O artigo 14 do Protocolo de Palermo é claro ao determinar que nada nele contido deve afetar adversamente os direitos e as obrigações derivadas de outros tratados e convenções internacionais, o que inclui a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados.

Esses instrumentos, dos quais o Brasil é signatário, estabelecem o princípio do non-refoulement, que proíbe a devolução de pessoas para países onde suas vidas ou liberdades estejam em risco. A restrição do acesso ao refúgio pode ser vista como uma violação direta desse princípio, pois coloca em risco a vida e a integridade de pessoas que já se encontram em situação de extrema vulnerabilidade.

Além disso, o artigo 7º do Protocolo de Palermo incentiva os Estados a concederem residência temporária ou permanente às vítimas de tráfico e contrabando, o que deve ser estendido a pessoas que buscam refúgio em virtude de ameaças à sua segurança. A cláusula de salvaguarda reforça a necessidade de harmonizar as políticas de combate ao tráfico e o contrabando com as normas internacionais de proteção aos refugiados, assegurando que uma não comprometa a eficácia da outra.

Portanto, ao adotar medidas que dificultam o acesso ao refúgio, o governo brasileiro não apenas desrespeita o Protocolo de Palermo e sua cláusula de salvaguarda, mas também compromete sua reputação internacional como um país comprometido com a defesa dos direitos humanos. Reiteramos que as obrigações internacionais do Brasil, especialmente no âmbito da proteção aos refugiados, devem ser cumpridas com rigor e em consonância com os mais altos padrões de respeito à dignidade humana.

Se o objetivo é combater o tráfico de pessoas e o contrabando de migrantes, seria mais coerente a persecução penal dos contrabandistas e desmantelamento da rede, com uso da inteligência, do que impedir que o migrante busque a proteção do Estado brasileiro, seja via pedido de refúgio, seja sinalizando para a autoridade migratória que ela está sendo contrabandeada/traficada.

Antecipando a necessidade de priorizar os direitos humanos no âmbito da política migratória, o Plano de Ação Contra o Contrabando de Migrantes, recentemente lançado pelo Ministério da Justiça, dedica um capítulo específico às ações estratégicas voltadas à proteção de migrantes vítimas de contrabando. O documento destaca a importância de focar em grupos vulneráveis, como mulheres, crianças, adolescentes, população LGBTQIA+, pessoas idosas, pessoas com deficiência, pessoas refugiadas, indivíduos em necessidade de proteção internacional, povos originários e comunidades tradicionais. No entanto, a Nota Técnica do Ministério da Justiça não apresenta propostas concretas de proteção para essas populações no contexto das ações de inadmissão (Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2024, p. 34-35).

É importante ressaltar que o fato de algumas pessoas inadmitidas não terem o Brasil como destino final, se é que isso de fato é uma regra, não implica que essas pessoas não necessitem da proteção do refúgio, e muito menos que devamos desconsiderar o princípio do non-refoulement. Além disso, essa situação não exclui a possibilidade de que essas pessoas estejam envolvidas em processos de tráfico de pessoas, o que torna fundamental a oferta de escuta qualificada para a compreensão de seus casos e a realização de denúncias em canais seguros e confiáveis. A inadmissão sumária, em vez de apoiar as ações de combate ao tráfico de pessoas e ao contrabando de migrantes, afasta as vítimas da possibilidade de buscar ajuda.

A Nota Técnica menciona que o encaminhamento do solicitante de refúgio para o país de destino indicado em seu bilhete aéreo não configura violação ao princípio do non-refoulement. Contudo, tal afirmação não é correta, pois o princípio do non-refoulement também se aplica à transferência do solicitante para qualquer outro país onde ele possa enfrentar riscos semelhantes. Isso abrange a remoção indireta para um terceiro país que, por sua vez, possa deportá-lo para o país de origem ou para outro local onde seus direitos fundamentais estejam ameaçados.

Ao colocar em prática tal medida, o Estado Brasileiro assume a responsabilidade e se torna cúmplice das violações de direitos humanos que uma pessoa possa sofrer ao ser devolvida para uma situação de perigo.

Ainda, a medida apresentada não está em consonância com a Recomendação nº 015/2016 do Ministério Público Federal direcionada à Polícia Federal e às companhias aéreas atuantes no Aeroporto Internacional de Guarulhos. A Recomendação é clara ao dizer que quando a Polícia Federal tomar ciência da impossibilidade de a companhia aérea dar seguimento à ordem de retirada em virtude de resistência do inadmitido, somente prosseguirá no cumprimento desta após se certificar se a resistência do inadmitido a embarcar não se deve ao seu enquadramento nos incisos do art. 1º da Lei 9474/1997 e/ou à vontade de solicitar o reconhecimento como refugiado nos termos do art. 7º da mesma lei. Caso contrário, a Recomendação estabelece que a Polícia Federal deverá interromper o cumprimento da ordem de retirada e providenciar a apresentação dos indivíduos à DEAIN para fins de formalizar a solicitação.

  1. Da justificativa do governo em relação aos dados ativos

Outro argumento usado pela Polícia Federal (Informação nº 28325345), que não prospera, é a classificação do animus de residir no Brasil de pessoas que solicitam o reconhecimento da condição de refugiado, no aeroporto de Guarulhos/SP, com base na renovação do protocolo e na emissão do CPF.

No entanto, tendo como base a nossa experiência de décadas de atendimento à população migrante e refugiada, podemos afirmar que muitos refugiados e migrantes, devido à sua condição de extrema vulnerabilidade, permanecem no Brasil por anos sem acesso à documentação adequada, utilizando documentos vencidos, trabalhando na informalidade e, ainda assim, contribuindo para a economia local mesmo sem ter aberto conta em banco.

Soma-se à vulnerabilidade econômica o fato de o Brasil ser um país com dimensões continentais. Em alguns casos, um solicitante de refúgio pode levar até 4 horas de carro para chegar à unidade da Polícia Federal responsável pela renovação de seu protocolo, o que o levaria a perder um dia inteiro de trabalho. Portanto, não se pode afirmar que a ausência de renovação do protocolo de refúgio, ou a busca pelo Documento Provisório de Registro Nacional Migratório (DPRNM) e pelo CPF sejam indicativos inequívocos de que o indivíduo não tenha se estabelecido no território nacional.

Os solicitantes de refúgio que apresentam seus pedidos no Aeroporto Internacional de Guarulhos não recebem o protocolo de registro necessário para a obtenção do DPRNM. Poucos deles compreendem ou são adequadamente informados, em sua língua materna, sobre a necessidade de realizar o procedimento para obtê-lo. Consequentemente, em muitos casos, o acesso a esse documento só pode ser viabilizado durante a renovação do protocolo de refúgio com o devido registro no SISMIGRA. Inclusive, o serviço de “Emissão de DPRNM” foi incluído na Operação Horizonte, da Superintendência da Polícia Federal de São Paulo, para sanar o problema advindo desse contexto. Portanto, a afirmação da Polícia Federal de que a maioria dessas pessoas não tem interesse em residir no Brasil porque não buscam esse documento em uma unidade da Polícia Federal não deve subsistir.

Ainda, não existem provas concretas de que todos os solicitantes registrados no SISCONARE durante o período analisado tenham saído do Brasil. O estudo realizado pela Polícia Federal, constante na informação nº 35918189/2024-SADIP/CGMIG/DPA/PF, tomou como base 8.327 processos recebidos em Guarulhos/SP, sendo que em apenas em 1.501 conseguiram identificar como último movimento migratório a saída do Brasil. Ou seja, não há certeza do que ocorreu em 7.276 dos processos recebidos.

Mesmo que consideremos o argumento da não renovação de protocolo e/ou emissão de CPF como prova da saída dos solicitantes do território brasileiro, é certo que ainda há, de acordo com as informações divulgadas pela Polícia Federal, centenas de pessoas que emitiram o CPF e renovaram o protocolo. De acordo com a lógica adotada pelo Ministério da Justiça, essas pessoas estariam, inequivocamente, no território brasileiro. Se elas requeressem refúgio sob a égide da nova regra, teriam o seu pedido negado. Nesse ponto, reproduzimos uma reflexão do filósofo iluminista Voltaire: “É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente.” Adaptando a frase ao cenário em deslinde, indagamos se as autoridades responsáveis pela política migratória brasileira querem, de fato, correr o risco de negar proteção internacional para as centenas de pessoas que dela precisam.

  1. Da nova medida do governo e suas implicações nas primeiras semanas em vigor

Uma vez que a nova regra já está em vigor, as organizações da sociedade civil que subscrevem este documento estão sendo informadas de implicações diretas e indiretas, cujas consequências mais gravosas ultrapassam os limites da Nota Técnica.

No início de setembro, chegou até um dos coordenadores da Missão Paz o relato que dois Padres do continente africano que foram destinados ao trabalho religioso no Chile e que já possuem vistos chilenos, ao tentarem emitir suas passagens em agência de viagem, foram alertados de que teriam que solicitar visto de trânsito para o Brasil, uma vez que o itinerário do voo previa escala no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Ao questionarem o serviço consular brasileiro, recebem a orientação descabida de que precisam solicitar um visto de visita para fazerem a escala no Brasil. Este é um exemplo claro de uma implicação que extrapola os limites da medida, uma vez que o Brasil não exige visto de trânsito e que, certamente, está afetando mais passageiros ao redor do mundo.

Ainda, recebemos comunicação de municípios que suspenderam o atendimento a imigrantes de qualquer nacionalidade com fundamento na Nota Técnica, especialmente afirmando que se alinhavam ao governo federal no combate ao contrabando de migrantes e tráfico de pessoas.

Além disso, durante visitas realizadas à área restrita do Aeroporto Internacional de Guarulhos nos dias 3 e 6 de setembro, constatamos uma série de problemas resultantes da nova medida. O que mais nos chamou a atenção foi a falta de clareza entre os funcionários terceirizados das companhias aéreas que não possuíam informações adequadas sobre o teor da medida implementada, tampouco havia um fluxo operacional devidamente estabelecido. Ficamos profundamente preocupados ao ouvir de colaboradores de determinada companhia aérea que a informação transmitida aos passageiros era a de que não existia mais a possibilidade de solicitação de refúgio no Brasil.

Outro problema identificado durante as visitas foi a ausência de informações claras sobre o destino dos migrantes. Não foi possível verificar se foram liberados em virtude de terem solicitado refúgio, se prosseguiram viagem e para qual destino, ou se permaneciam inadmitidos, tampouco por quanto tempo continuariam nesta condição.

Claramente, a ausência de informações precisas por parte dos funcionários do aeroporto quanto aos procedimentos a serem adotados nos casos em que o passageiro se recusa a embarcar para seu destino final ou retornar à sua origem é um aspecto preocupante. Essa lacuna gerou grande apreensão de que alguns migrantes possam ficar em um verdadeiro “limbo” por um período prolongado, à mercê de diversas violações de direitos. Além disso, há o temor de que repatriações indevidas estejam sendo realizadas.

No que se refere às repatriações, o artigo 49, §2º, da Lei de Migrações estabelece que a Defensoria Pública da União deve ser notificada nos casos em que a medida de devolução envolva pessoa em situação de refúgio ou apatridia, de fato ou de direito, bem como menores de 18 anos desacompanhados ou separados de suas famílias. Ademais, a notificação também se aplica nos casos em que a devolução seja para um país ou região que possa representar risco à vida, à integridade pessoal ou à liberdade do indivíduo.

Até o momento, não tivemos informações indicando que a DPU tenha sido notificada em relação às repatriações. Trata-se de um fato particularmente preocupante, não apenas pelo desrespeito ao devido processo legal, mas também pela evidente possibilidade de que repatriações estejam sendo realizadas em flagrante violação da lei.

  1. Das conclusões:

Diante dos argumentos acima expostos, as organizações signatárias reiteram sua posição de que a Nota Técnica nº 18/2024/Gab-DEMIG/DEMIG/SENAJUS/MJ é inconstitucional, ilegal e inconvencional. Não só o instrumento é inadequado do ponto de vista da hierarquia das normas, como seu conteúdo coloca em risco pessoas que potencialmente poderiam necessitar de proteção internacional e ser reconhecidas como refugiadas e agrava o racismo institucional praticado contra migrantes advindos de países africanos e asiáticos.

Reconhecemos a necessidade de discutir amplamente a situação dos aeroportos internacionais e encontrar soluções para combater os crimes de contrabando de migrantes e tráfico de pessoas. Contudo, isso deve ser feito de forma transparente, com a devida participação de instituições que historicamente trabalham em prol dos direitos das pessoas migrantes e refugiadas e que possuem conhecimentos técnico e prático essenciais ao aperfeiçoamento das normas, bem como com o devido treinamento e orientações para os profissionais que atuam nos aeroportos, nas companhias aéreas e no controle migratório.

Superamos uma lógica securitária da migração em 2017 e não podemos retroceder agora. Portanto, apelamos para que o MJSP: i) suspenda imediatamente os efeitos da Nota Técnica que impede a entrada no Brasil de passageiros em trânsito sem visto e, consequentemente, seu pedido de refúgio; ii) institua um espaço de diálogo específico sobre a questão que não se reduza a apenas um encontro no formato de perguntas e repostas, mas que efetivamente envolva as pessoas nas discussões e encaminhamentos, paralelo ao CONARE e que inclua outros atores da sociedade civil indispensáveis a essa discussão; iii) não volte a publicar quaisquer documentos que infrinjam o direito ao non refoulement, ao acesso imediato ao procedimento de solicitação de refúgio e à não discriminação; iv) apresente relatórios periódicos com informações sobre quantitativo de pessoas forçadas a seguir viagem e suas respectivas nacionalidades, bem como de passageiros retornados ao Brasil após serem inadmitidos em seus destinos finais; v) considere as soluções menos gravosas apresentadas pela Defensoria Pública da União na RECOMENDAÇÃO Nº 7354699 – DPGU/SGAI DPGU/GTMAR DPGU, de 16/08/2024.

Subsidiariamente, reiteramos o pedido apresentado no ponto 3 do presente documento para modulação da Nota ao excluir expressamente de seu escopo alguns grupos vulneráveis.

Por fim, apresentamos a seguir perguntas que entendemos serem fundamentais para a compreensão das medidas voltadas a passageiros em trânsito e migrantes inadmitidos, visando primordialmente a garantia de seus direitos humanos.

  1. Perguntas ao Ministério da Justiça e Segurança Pública

Apesar de algumas questões já terem sido respondidas em reunião com o DEMIG e através do OFÍCIO Nº 104/2024/Gab-DEMIG/DEMIG/SENAJUS/MJ, de 24/08/2024, em resposta aos questionamentos feitos pela DPU, reiteramos aqui algumas perguntas, que nos parecem que permanecem sem resposta, levantando preocupações sobre possíveis violações dos direitos humanos associadas às medidas de embarque compulsório para migrantes que não desejam seguir viagem. É crucial garantir que essas medidas respeitem os direitos e a dignidade dos indivíduos afetados.

  1. Haverá normativa e protocolo operacional regulando a saída compulsória dos migrantes em trânsito?
  2. Haverá algum treinamento para a Polícia Federal e\ou funcionários e terceirizados de cias aéreas que atuam nos aeroportos efetivando o embarque compulsório? E qual órgão será responsável por acompanhar os passageiros até a aeronave?
  3. Como está sendo garantido o direito à informação e ao consentimento informado antes de qualquer decisão forçada?
  4. Há a possibilidade de o migrante contestar a decisão ou apelar contra a ordem de seguir viagem?
  5. Qual é o papel dos serviços vinculados ao Sistema Único da Assistência Social e da Saúde no apoio durante a execução da ordem de embarque compulsório, especialmente para apoiar crises psicológicas e de saúde no momento da execução da ordem?
  6. Qual é o protocolo para lidar com situações em que a pessoa não pode seguir viagem por razões legítimas, como problemas de saúde ou segurança, mulheres grávidas, pessoas com ferimentos, entre outros?
  7. Quais são os mecanismos para documentar e avaliar as intercorrências durante o embarque compulsório?
  8. Como será realizada a avaliação dos casos para determinar a legitimidade dos pedidos de refúgio nos aeroportos? Haverá uma equipe destacada do CONARE para executar essa função?
  9. Haverá um sistema de supervisão independente para revisar a implementação e a execução da decisão, bem como monitoramento de violação de direitos nas áreas restritas?

NOTAS

  1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c7FRgawxm3A&list=PLkh9EPEuEx2tPrb98–BIgdGSv6LdJDOM&index=15 (35:26 a 35:41).
  2. GORCZESKI, Vinicius, A história do cubano que viveu cinco meses no aeroporto de Guarulhos, Época, 05 de outubro de 2013. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/noticia/2013/10/historia-do-cubano-que-viveu-cinco-meses-no-baeroporto-de-guarulhosb.html
  3. Nomes fictícios utilizados na reportagem.
  4. FARIAS, Adriana, Em busca de refúgio, estrangeiro fica 20 dias retido em aeroporto, Folha de São Paulo, 14 de junho de 2014. Disponível em:

https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/06/1470333-em-busca-de-refugio-estrangeiro-fica-20-dias-retido-em-aeroporto.shtml

  1. https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/comite-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura/relatorios-cnpct/relatorio-atualizado-cnpct-bienio-2014-2015
  2. https://documents.un.org/doc/undoc/gen/g16/014/13/pdf/g1601413.pdf
  3. https://www.gru.com.br/pt/institucional/informacoes-operacionais/movimentacao-aeroportuaria
  4. MELLO, Daniel, Aeroporto de Guarulhos tem 68 afegãos acampados em busca de refúgio, Agência Brasil, 15 de setembro de 2022. Disponível em:

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2022-09/aeroporto-de-guarulhos-tem-68-afegaos-acampados-em-busca-de-refugio-0

  1. ZAREMBA, Júlia, Mais de 300 migrantes retidos no aeroporto de Guarulhos, G1, 06 de dezembro de 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/06/migrantes-retidos-no-aeroporto-de-guarulhos.ghtml>

REIS, Daniel. Chegada de vietnamitas alerta PF sobre contrabando de migrantes, CBN. 07 de dezembro de 2023. Disponível em: <https://cbn.globo.com/sao-paulo/noticia/2023/12/07/chegada-de-vietnamitas-alerta-pf-sobre-contrabando-de-migrantes.ghtml>

  1. Santos, William; Patriarca, Paola; Marques, Patrícia. Vídeo mostra momento em que imigrante de Gana é atendido no Aeroporto de SP e levado para hospital dias antes de morrer, G1, 10 de setembro de 2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/09/10/video-mostra-momento-em-que-imigrante-de-gana-e-atendido-no-aeroporto-de-sp-e-levado-para-hospital-dias-antes-de-morrer.ghtml>
  2. RODRIGUES, Alex, PF aponta “uso indevido” de refúgios e pede regulamentação condizente, Agência Brasil, 04 de julho de 2024. Disponível em:

< PF aponta “uso indevido” de refúgios e pede regulamentação condizente | Agência Brasil (ebc.com.br)>

  1. CRUZ, Patrícia Elaine. Aeroporto de Guarulhos tem 291 imigrantes retidos em área restrita, Agência Brasil. 12 de junho de 2024. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-06/aeroporto-de-guarulhos-tem-291-imigrantes-retidos-em-area-restrita>
  2. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm
  3. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm